domingo, 30 de agosto de 2009

Argumentum ad verecundiam (dirigido ao sentimento da honra)

Autor do Texto: Robson Sciola

Olá, pessoal.
O que vou postar abaixo não fala diretamente sobre Umbanda ou qualquer religião de matriz africana. De antemão informo tratar-se de um texto denso, que requer disposição, paciência e, eventualmente, um bom léxico ao lado.
Assim sendo, caso não interesse a leitura e a possibilidade de reflexão, sugiro que se pare por aqui e a mensagem seja de imediato deletada. Ninguém ficará ofendido.
Se o provável leitor tiver interesse, sugiro que salve o texto à parte para ler e reler no momento que julgar adequado.
O material é composto por excertos do livreto de Arthur Shopenhauer, entitulado "Como Vencer um Debate sem Precisar ter Razão", com introdução notas e comentários do filósofo Olavo de Carvalho, Rio de Janeiro, Topbooks Ed., 1997. Tais excertos foram retirados da parte que discorre sobre Estratagemas Dialéticos, em especial o Argumentum ad verecundiam (dirigido ao sentimento da honra).
Por que faço esta postagem? Porque tive a compreensão - que sempre pode estar equivocada! - de que seu conteúdo poderia lançar uma luz para se compreender um fenômeno que ocorre em sociedade, e portanto se reflete nos comportamentos relativos à religião e religiosidade; poderíamos chamar esse fenômeno de espírito da manada, espírito do rebanho, ou a tendência do vulgus (homem comum).
Ressalto que não se pretende apresentar uma "verdade", nem se impor uma visão filosófica, mas apenas expor uma linha de pensamento para sofrer o crivo particular e pessoal de cada um, de maneira que se possa chegar à sua própria conclusão.
Lembrem-se que são excertos escolhidos dentro de um contexto original e apresentados fora deste, com o propósito de se estabelecer correlação a comportamentos visíveis em diversos segmentos religiosos - mas não somente religioso -, inclusive na Umbanda; comportamentos estes que eventualmente devem ser questionados.
Destacarei, entretanto, os trechos redigidos por Shopenhauer e os de Olavo de Carvalho.
Aos que se aventurarem, boa leitura e reflexão.
Abraços Fraternos,
Binho

Olavo em nota:
A mera crença, além de ser menos trabalhosa, tem a vantagem de dar ao crente um sentimento de participação e solidariedade grupal, indispensável para manter de pé as personalidades frágeis. Bastaria aliás esta observação para dar por terra com o mito do "espírito libertário da juventude", topos retórico infalível no discurso político. O jovem não é libertário nem inconformista: apenas adere ao sentimento da maioria esmagadora - seus companheiros de geração -, que exerce sobre ele uma pressão mais direta, na escola e nas ruas, do que a autoridade dos pais, confinada ao recinto doméstico. Daí que a juventude tenha sido sempre a principal massa de manobra para as ideologias totalitárias. Daí também que seja quase impossível, num ambiente dominado por jovens, um debate honesto e sem preconceitos.

Shopenhauer:
Diz Sêneca: Unuscuiusque mavult credere quam judiciare ("qualquer um prefere crer a julgar por si mesmo").

Olavo em nota:
Uma boa definição de "homem comum" está em Ludwig von Mises, A Ação Humana. Um Tratado de Economia, trad. Donaldo Stewart Jr., Rio, Instituto Liberal, 2ª ed., 1995, p. 49:
"O homem comum não especula sobre os grandes problemas. Ampara-se na autoridade de outras pessoas, comporta-se 'como um sujeito decente deve comportar-se', como um cordeiro no rebanho. É precisamente esta inércia intelectual que caracteriza um homem como um homem comum. Entretanto, apesar disso, o homem comum efetivamente escolhe.. Prefere adotar padrões tradicionais ou padrões adotados por outras pessoas porque está convencido de que esse procedimento é o mais adequado para atingir o seu próprio bem-estar. E esta apto a mudar sua ideologia e, conseqüentemente, o seu modo de ação, sempre que estiver convencido de que a mudança servirá melhor a seus interesses".
Essa definição destaca dois traços: a passividade intelectual e a sujeição das idéias à comodidade do conforto psicológico. quando se dá ao jovem a ilusão de que ao aderir às modas e crenças de sua geração ele está se libertando e se individualizando, em vez de advertí-lo de que o faz por inércia e por busca de segurança psicológica, o resultado que se obtém é incutir nele o mais perverso dos conformismos. O homem não se liberta do "espírito de rebanho", de que falava Nietzsche, simplesmente por passar de um rebanho mais velho a um mais novo.

Shopenhauer:
(...) as pessoas comuns têm profundo respeito ante os especialistas de todo gênero. Ignoram que quem faz de um assunto sua profissão não ama o assunto em si, e sim o lucro que ele lhe dá; e que aquele que ensina um assunto raras vezes o conhece a fundo, porque àquele que o estuda a fundo não resta, em geral, tempo para dedicar-se ao ensino.

Olavo em nota:
Não esquecer que, nos dias que correm, a simples adesão a um novo preconceito faz um sujeito se sentir livre de preconceitos. O uso corrente da palavra "preconceito" é de teor nitidamente preconceituoso, pois cria uma prevenção irracional contra um opinião que, em geral, só se conhece por alto. A acusação de "preconceito" é hoje um dos estratagemas de uso mais freqüente: ela dispensa o exame dos argumentos da parte contrária. Nos meios acadêmicos, fortemente influenciados pela mentalidade "politicamente correta!", ampliar desmesuradamente o sentido da palavra "preconceito" tornou-se até um método de corrente de investigação e prova em História e ciências sociais: se um sujeito fez uma piada sobre judeus, é prova de que tem preconceito anti-semita. A suscetibilidade neurótica que espuma raiva ante gracejos, por seu lado, não é preconceito: é exemplo de superior neutralidade científica.

Shopenhauer:
De fato, não existe nenhuma opinião, por absurda que seja, que os homens não se lancem a torná-la sua, tão logo se tenha chegado a convencê-los de que é universalmente aceita. O exemplo vale tanto para suas opiniões quanto para sua conduta. São ovelhas que vão atrás do carneiro-guia aonde quer que as leve. Para ele, é mais fácil morrer que pensar. É estranho que a universalidade de uma opinião tenha para eles tanto peso, pois basta-lhes observar a si mesmo para constatar como eles mesmos aceitam opiniões sem julgar, pela força do mero exemplo. Mas, na realidade, não o vêem porque desprovidos de todo conhecimento de si mesmos.
Só os melhores dizem, com Platão: "os muitos têm muitas opiniões", isto é, o Vulgus tem muitas lorotas na cabeça, e quem desejar livrar-se delas terá muito trabalho pela frente.
A universalidade de uma opinião, se falarmos a sério, não é uma prova nem um indício de veracidade. Os que afirmam isto devem admitir: 1) que a distância no tempo priva aquela universalidade de sua força probatória; do contrário, deveriam estar em vigor todos os antigos erros que num tempo eram considerados verdade.


Olavo em nota:
Se algumas verdade admitidas por todos atravessam os tempos e outras não, estas últimas não são realmente admitidas por todos, mas só aparentemente e temporariamente. Não há como escapar à distinção entre a opinião dominante de uma época e o quod semper, quod ubique, quod ab omnibus credita est ("aquilo em que todos, em toda parte, sempre acreditaram"). Pode-se alegar,é claro, que este é difícil de conhecer, mas, em todo o caso, jamais se confunde com a opinião de um grupo, por mais vasto, ou de uma época, por mais longa que seja.

Shopenhauer, continuando:
Por exemplo, seria preciso aceitar de novo o sistema ptolomaico ou, em todos os países protestantes, o catolicismo; 2) que a distância no espaço produz o mesmo efeito; do contrário, a diversidade de opinião entre os que professam o budismo, o cristianismo e o islamismo os poria em apuros.
O que se chama opinião geral reduz-se, para sermos precisos, à opinião de duas ou três pessoas; e ficaríamos convencidos disto se pudéssemos ver a maneira como nasce tal opinião universalmente válida. Então descobriríamos que, num primeiro momento, foram dois ou três que pela primeira vez as assumiram e apresentaram ou afirmaram e que os outros foram tão benevolentes com eles que acreditaram que as haviam examinado a fundo; prejulgando a competência destes, outros aceitaram igualmente essa opinião e nestes acreditaram por sua vez muitos outros a quem a preguiça mental impelia a crer de um golpe antes que tivessem o trabalho de examinar as coisas com rigor. Assim crescem dia após dia o número de tais seguidores preguiçosos e crédulos.
De fato, uma vez que a opinião tinha um bom número de vozes que a aceitavam, os que vieram depois supuseram que só podia ter tantos seguidores pelo peso concludente de seus argumentos. Os demais, para não passar por espíritos inquietos que se rebelaram contra opiniões universalmente admitidas e por sabichões que quisessem ser mais espertos que o mundo inteiro, foram obrigados a admitir o que todo mundo já aceitava.


Comentário de Olavo:
Schopenhauer não poderia adivinhar que, na época que se seguiria, essa situação viria a inverter-se; isto é, que o novo e o diferente viriam a adquirir, por força da velocidade das comunicações, a autoridade de crenças universalmente aceitas, relativizando ou revogando, no ato e sem exame, opiniões milenares. Um forte preconceito em favor do "novo" faz tomar por novidades coisas que não o são, ao mesmo tempo que, dia após dia, a crescente ignorância do passado faz a inteligência girar em círculos, quando crê avançar. Por outro lado, desde que Kant trouxe à baila as estruturas que a priori condicionam o conhecimento, e que só podem ser compreendidas desde o ponto de vista superior do "sujeito transcendental" cujo horizonte abarca a um tempo o conhecido e o conhecer, uma sucessão impressionante de pensadores e cientistas veio revelando novas e novas estruturas condicionantes, cada qual pretendendo enxergar por cima e por trás dos ombros alheios, como se novos sujeitos transcendentais, cada vez mais transcendentais, fossem abarcando e engolindo os horizontes de seus antecessores e desvelando os fios ocultos que moviam os cego marionetes no palco do drama humano.
Para Marx, o titereteiro invisível da História chama-se "interesse de classe": é ele que move os guerreiros, estadistas e pensadores que, ingenuamente, acreditavam estar agindo por Deus, pela pátria, pela verdade ou por qualquer outro motivo.
Para Nietzsche, o interesse de classe ou qualquer outro motivo alegado para explicar a condição humana não é senão o véu ilusório a encobrir a verdadeira motivação da história toda: a vontade do poder.
Já segundo Freud, todos os personagens do drama, inclusive aqueles que pensam agir por interesse de classe ou por uma nietzscheana vontade de poder, não fazem senão obedecer ao impulso da libido inconsciente recalcada.
Para Jung, ao contrário, o revolucionário de Marx, o recalcado libidinoso de Freud e o ambicioso super-homem de Nietzsche são apenas atores que, sem saber, repetem as tramas arquetípicas de um script milenar registrado no inconsciente coletivo.
Korzybsky e Whorf, os fundadores da "Semântica Geral", pretendem que todo o Ocidente, incluindo Marx, Freud, Nietzsche e Jung, tenha sido enganado durante dois milênios por "pressupostos metafísicos" aristotélicos imbricados na estrutura da linguagem, e que os primeiros a escaparem dessa coerção invisível e onipresente tenham sido... Korzybsky e Whorf.
Mas Foucault dizque não é nada disso: o script invisível,o a priori supremo, chama-se episteme: é a estrutura geral do saber, que condiciona todos os conhecimentos particulares de uma dada época - incluindo as teorias de Marx, Freud, Jung, Korzybsky e Whorf - e que de repente, sem razão plausível, muda para outra episteme deixando todos perdidos no ar, como se um cenário rodante girasse de Hamlet para Romeu e Julieta sem dar aviso aos atores.
Cada um pretende, em suma, descerrar o véu, revelar a trama secreta da qual seus antecessores foram apenas protagonistas inconscientes.
De modo geral, o público letrado e científico dá credibilidade imediata e automática a essas revelações, sem que a ninguém ocorra a idéia de que seu número mesmo e a velocidade de sua sucessão devem torná-las, a todas, igualmente duvidosas.
Tudo isso contribui para criar, nos meios letrados, um preconceito inverso daquele assinalado por Shopenhauer: o preconceito de que cada geração, pelo simples fato de ter nascido mais tarde, é o eu transcendental das gerações mais velhas e enxerga o fundo das águas onde boiavam, inconscientes, os antepassados.
Assim, dia adia torna-se cada vez mais difícil mostrar às novas gerações qualquer coisa que os antigos enxergassem perfeitamente bem e cuja visão tenha se perdido entropicamente na massa informática do "novo". O esquecimento adquire o prestígio de um saber superior. Doutrinas que o público desconhece passam por "superadas", sem exame, por mero decurso de prazo. O temor de passar por "um sabichão que quisesse ser mais esperto que o mundo inteiro" cede lugar ao medo de passar por um bobalhão desatualizado, que se ocupa de idéias superadas. Este preconceito é hoje o mais temível obstáculo em qualquer discussão científica.

Shopenhauer, continuando:
Neste ponto, a concordância torna-se uma obrigação. E, de agora em diante, os poucos que forem capazes de ter uma opinião por si mesmos se calarão, e só poderão falar aqueles que, totalmente incapazes de ter uma opinião e juízo próprios,sejam o eco das opiniões alheias. E estes, ademais, são os mais apaixonados e intransigentes defensores dessas opiniões. Pois estes, na verdade, odeiam aquele que pensam de modo diferente, não tanto por terem opinião diversa daquela que ele afirma, quanto pela sua audácia de querer julgar por si mesmo, coisa que eles nunca poderão fazer, sendo por dentro conscientes disso.
Em suma, são muito poucos os que podem pensar, mas todos querem ter opiniões. E que outra coisa lhes resta senão tomá-las de outros em lugar de formá-las por conta própria?
E, dado que isto é o que sucede, que pode valer a voz de centenas de milhões de pessoas?
Tanto, por exemplo, quanto um fato histórico que se encontre em cem historiadores, quando se constata que todos se copiaram uns dos outros, com o que, enfim, tudo se reduz a um só testemunho. (Segundo Bayle, Pensées sus les Comètes, vol.I, p. 10).
Dico ego, tu dicis, se denique dixit et ille:
Dictaque pos toties, nil nisi dicta vides.
("Eu digo, tu dizes e, no fim, o diz também ele; depois de dar-lhe tantas voltas, ninguém mais vê aquilo que se disse")


Meu comentário final:
Vocês já perceberam o comportamento descrito do vulgus quando se discute religião, segmentos religiosos e religiosidade?
Acredito que temos o que pensar! ;^)
Abração,
Binho

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